Nunca me hei-de esquecer de como aprendi a ler. Quando era menina, as palavras escapuliam-se diante dos meus olhos como pequenos escaravelhos negros cheios de pressa. Mas eu era mais inteligente do que elas. Aprendi a reconhecê-las apesar de tentarem escapar-me velozmente. Até que, por fim, consegui abrir os livros e entender o que lá estava escrito. Sozinha, tornei-me capaz de ler contos, histórias engraçadas e poemas. No entanto tive surpresas. A leitura deu-me poder sobre os contos e de alguma forma também deu aos contos um certo poder sobre mim. Nunca lhes pude escapar. Isso faz parte do mistério da leitura. Uma pessoa abre um livro, acolhe e compreende as palavras e, se a história for boa, ela explode dentro de nós. Aqueles escaravelhos que correm em linha recta de um lado para o outro da página em branco convertem-se primeiro em palavras e, logo a seguir, em imagens e acontecimentos mágicos. Ainda que certas histórias pareçam nada ter que ver com a vida real, ainda que nos conduzam a surpresas de toda a espécie e se distendam em múltiplas possibilidades, para um lado e para o outro, como pastilhas elásticas, no final as histórias que são boas devolvem-nos a nós mesmos. São feitas de palavras, e todos os seres humanos sonham ter aventuras com as palavras. Quase todos começamos como ouvintes. Ainda bebés, as nossas mães e os nossos pais brincam connosco, dizem-nos rimas, tocam-nos as mãos («Pico pico maçarico quem te deu tamanho bico…») ou põem-nos a bater palmas («Palminhas, palminhas…»). Os jogos com palavras são ditos em voz alta e, quando somos crianças, escutamo-los e rimos com eles. Logo a seguir aprendemos a ler os caracteres impressos na página branca e, mesmo quando lemos em silêncio, há uma certa voz que está presente. A quem pertence esta voz? Pode ser a tua própria voz, a voz do leitor. Mas é mais do que isso. É a voz da história que vem do interior do próprio leitor. É claro que há hoje muitas maneiras de contar uma história. Os filmes e a televisão têm histórias para contar, embora não usem a linguagem da maneira como o fazem os livros. Os escritores que trabalham em guiões de televisão ou de cinema são obrigados a utilizar poucas palavras. «Deixem as imagens contar a história», dizem os especialistas. Muitas vezes vemos televisão na companhia de outras pessoas, mas quando lemos quase sempre estamos sós. Vivemos numa época em que o mundo está cheio de livros. Mergulhar nos livros à procura de alguma coisa, lendo-os e relendo-os, faz parte da viagem de cada leitor. A aventura do leitor consiste em descobrir, nessa selva de caracteres impressos, uma história tão vibrante que o transforme como que por magia. Uma história tão apaixonante e misteriosa que mude a sua vida. Creio que cada leitor vive para esse momento em que de súbito o mundo de todos os dias se altera um pouco, abre espaço a uma nova piada, a uma ideia nova, àquela nova possibilidade que é dada a uma determinada verdade de se exprimir pelo poder das palavras. «Sim, isto é mesmo verdade!», exclama aquela voz dentro de nós. «Estou a reconhecer-te!» A leitura é verdadeiramente apaixonante, não acham? Margaret Mahy MARGARET MAHY nasceu em Whakatane, Nova Zelândia, em 1936. Bibliotecária, decidiu dedicar-se a tempo inteiro à escrita, em 1980. Escreveu obras dirigidas a diferentes idades, cultivando géneros que vão do álbum para crianças pequenas ao romance juvenil, passando pela poesia e pelo texto dramático. É uma das mais premiadas escritoras da Nova Zelândia, tendo sido distinguida, em 2006, com o Prémio Hans Christian Andersen do International Board on Books for Young People (IBBY), o mais importante galardão mundial atribuído a um autor de literatura para crianças e jovens. Marcada pela riqueza poética da linguagem, a escrita de Mahy tem logrado exprimir, por vezes de modo metafórico mas sempre com extraordinária autenticidade, a experiência da infância e da adolescência. Encontra-se traduzida em numerosos idiomas, incluindo o português (O Rapaz dos Hipopótamos, Livros Horizonte). Outros títulos que publicou: Catálogo do Universo, Lembrança, Um Leão no Prado, O Homem cuja Mãe Era Pirata. Versão portuguesa: José António Gomes
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